Até parece que ainda o estou a ver: ali sentado, na sua poltrona, onde mais ninguém se sentava mesmo na sua ausência, de cachimbo fumegante a ocupar-lhe a mão direita e chapéu à Al Capone no cimo da cabeça, elegantemente equilibrado sob a ligeira inclinação para um dos lados, emprestando-lhe aquele ar  de bom malandro que tudo faz por se especializar na categoria.  O fato cinzento e a camisa imaculada é que destoavam das sapatilhas, que, vá-se lá saber porquê,  fazia questão de usar sempre. Talvez para correr mais depressa numa situação de apuros... 
A garrafita do bom e velho whisky de malte era a sua inseparável companheira, sempre pronta a afogar-lhe a sede em qualquer ocasião.
Um dia foi notícia a sua morte. Creio que ainda lá estão restos do cartaz, colados na parede da rua sem nome. Por certo que a sua alma não andará longe... o cheiro adocicado do tabaco, denuncia-o.


Amanhã, quando a morte chegar, vou olha-la bem de frente e sem desviar os olhos das suas vazias  e redondas cavidades côncavas,  vou dizer-lhe que não quero morrer, visto que já nada mais terei a perder...!
E se ela vacilar por um só segundo que seja, ousarei negociar uma vida nova, nem que para isso tenha também de enfrentar a minha própria alma desencarnada...
Percorreremos a vida de trás para a frente e comprometer-me-ei a reparar todos os meus erros em troca de uma nova chance, começando tudo de novo de um ponto neutro, arriscando uma segunda existência como um ser humano empenhado em ser melhor do que fora na sua vida passada.
Amanhã, quando ela chegar, logo veremos...


Quatro paredes e um tecto, é tudo o que me resta do mundo...
Sinto fome da vida, que, indiferente ao meu sentir, fervilha no lado de fora da minha janela. E eu, do lado de dentro, assisto impotente ao incessante ribombar dos tambores que vão passando, tornando inquietante a quietude dos dias quase vazios. E vou contando as horas entre a madrugada e o anoitecer, especada, hipnotizada em frente da minha janela, fingindo que vivo enquanto me morro em cada instante de vida, suspensa por um fio de coisa nenhuma.
Amanhã, voltarei a acordar com a sensação de que algo me escapa para lá da janela, cuja cadeira em frente, me aguarda serena e permissiva. Sento-me e recomeço tudo de novo, exactamente do mesmo ponto de partida em que o deixei, que avança e retrocede, dia atrás de dia, sem sair do sitio onde me encontro. Ludibriada pela ilusão de que abraço o mundo e o mundo me abraça a mim, ainda que presa no vácuo do tempo que me sufoca e ao mesmo tempo, me foge...