Não se recorda há quanto tempo ali está, não sabe os anos que tem, nem sequer o que fora em tempos se é que algum dia chegou a ser alguma coisa. Diz que talvez tenha sido carteiro, cobrador, polícia ou barbeiro... pode ter sido tudo isso, uma das coisas ou coisa nenhuma. Pelo modo como fala, até pode muito bem ter sido doutor! Mas... o que importa isso? O que poderá interessar o passado de uma alma da qual ninguém se interessa no presente? Não se lhe conhecem amigos nem família; pelo menos, ninguém aparece para a visita.
Sabe, isso sim, cantigas de cor de outros tempos idos, que, por um qualquer motivo, lhe ficaram intactas num recanto da mente onde tudo o resto se diluiu ou deformou. Recita-as pomposamente como se declamasse poesias, num tom de voz potente e bem colocado, devolvendo à lucidez um pequeno instante que se escapa da loucura que normalmente lhe habita a mente, como se fosse um cão a morder-lhe o cérebro, constantemente...


Há qualquer coisa de enigmático que se esconde por detrás da falsa indiferença que ambos fazem questão de mostrar. Talvez no indizível dos pensamentos...
É uma espécie de jogo de sedução, mortalmente perigoso e cuja única regra se impõe pelo silencio que a rege e algo me diz que nenhum dos dois se atreverá a quebra-la, jamais!
Obrigados a permanecer frente a frente, sem terem para onde fugir, não terão outro remédio que não seja o de arriscar no jogo que servirá também para testar as suas resistências. Por isso, serão jogadores mudos até ao resto da vida, cientes de que nada mais haverá para ganhar, além daquilo que todos os dias irão perdendo e que já conta desde o início, logo após o fim...
Trocaram a amizade saudável que tinham por uma leviandade, por um capricho, por um impulso, por uma paixão... e se algum dia ganharam, certamente que o peso da perda será sempre maior do que o do ganho.



Disse-me que andava a cultivar silêncios, com o intuito de melhor poder treinar os músculos da virtude do pensamento, que, por descuido seu, já dava mostras de alguma fraqueza devido ao desleixo a que se tinha votado. Disse-me também, que se não tivesse tido um rasgo de lucidez naquele momento exacto e desse mais uns passinhos em frente, naquela direcção desnorteada, não tardaria muito a entrar numa espiral devastadora, rumo à vastidão do infinito mundo da imbecilidade. (Coisa que sempre criticara enquanto ser humano detentor de todas as faculdades mentais no seu perfeito estado de saúde. Mas um dia, num certo estado de desespero para onde a vida o tivera empurrado, e sem saber muito bem como, se viu agarrado a um galho que lhe pareceu firme ou teria sido levado na enxurrada).
Seria pois, por certo, um caminho sem retorno com início na beirinha daquele precipício do buraco negro da insanidade para onde se costumam atirar todas as almas vazias que não souberam cuidar de si mesmas e se entregaram deliberadamente aos sugadores de cérebros a quem chamavam respeitosamente de pastores, passando assim a fazer parte de um vasto rebanho de suicidas voluntários sem qualquer tipo de vontade própria, limitando-se a seguirem atrás umas das outras...
Pobres almas desperdiçadas e em torno de coisa nenhuma.