O que sou
Nem eu sei
Quando me perco
De novo
Antes de me achar
Em pensamentos
Tantas vezes desconexos...

Invento-me
Em cada esquina
De ruas improváveis
Demorando-me nas palavras
Que procuro
Compondo estes versos
Onde me reinvento
Peneirando-os aos ventos
Que me sopram
Luares de Outono...

Vivo-me e morro-me
Nestas terras do esquecimento
Em desassossegos
Constantes
Pela busca incessante
De mim mesmo!



Ali estava ele todo janota! Não fossem as circunstancias que para ali o trouxeram e quase que poderia aparecer numa boda mesmo que não fosse convidado, que certamente ninguém iria reparar.
Mas não. Era ali que tinha de estar! Naquele lugar deprimente, rodeado de gente decrépita num mundinho de inutilidades incomuns. Se pudesse, transferir-se-ia mentalmente para outro lugar qualquer, mais de acordo com a sua aparente condição, já para não falar da fatiota que muito o compunha, disfarçando-lhe até a (des)graça com que havia nascido e para a qual não se conheciam grandes remédios...
Na impossibilidade de tal, urgia concentrar a atenção em qualquer coisa que o abstraísse de tudo aquilo. E enquanto não despachavam o morto, olhou em seu redor, também ele mortinho por descobrir algo, para, por sua vez, ser ele a matar o tempo daquele compasso de espera interminável. Foi então que se quedou a observar um pingo que se alongava e se recolhia de novo, como que a tomar balanço do alto de um precipício em jeito de torneira enferrujada antes de se lançar no abismo que culminava num lastro acastanhado que cobria o fundo daquilo que supostamente deveria ser um lavatório. Dezenas de outras gotas, igualmente ferrugentas, se lhe seguiam, obedecendo sempre aquele ritual que se não percebia, de alongamentos e encolhimentos imediatamente antes do salto final.
Entretanto já tinha assomado à soleira da porta o cangalheiro-mor que exibia numa das mãos com ar vitorioso, a guia de marcha que se esperava. Desprezou a torneira ferrugenta e as suas gotas suicidas e seguiu em direcção ao caixão, empurrando a carreta que o transportava.



Em suspenso pelo fino fio da lembrança, ostentava no pensamento um pequeno pedaço de vida amarelecido pelo tempo que lhe desenhara traços de encanto, despertando sentimentos até ali desconhecidos. Coisas que os olhos não vêem, mas que a alma sente quando tocada pela sensação de vivências adormecidas ao longo de uma vida que se diluiu no éter em menos de nada, ressequindo-nos aos poucos e da qual sobraram pequenos cristais que brilham sempre que o cérebro se desliga do presente e se transforma numa tela mágica onde só passam as imagens do que desejamos, arquivadas na gaveta das relíquias de valor inestimável. É esse o tesouro da conquista pela sã harmonia do"eu"em constantes desassossegos motivados pela luta diária que só no fim nos apercebemos, girar em torno de coisa nenhuma!...




Eram as memórias que a não largavam, que tinha agarradas a si como uma lapa grudada na rocha; o sedimento de uma infância sombria, gorduroso e peganhento a salitrar-lhe as frágeis paredes da alma, a corroer-lhe o ser invisível que lhe habita as profundezas do íntimo onde se guarda o sentimento verdadeiro, aquele que esconde do resto do mundo...
Encontrei-a numa daquelas avenidas chiques da moda, para onde se mudaram as pessoas modernas e onde se passeava aparentemente descontraída, mas bastou um só sopro de brisa vindo dessa outra vida para se deixar cair na inevitável melancolia que lhe assaltou as débeis defesas do castelo de ar que construíra em torno de si para se livrar dos fantasmas que a perseguiam desde o dia em que os relógios pararam e lhe passaram a contar o tempo num ciclo errado, como se ela tivesse saltado para o interior de um espelho e o seu mundo se tivesse virado ao contrário, passado a estar, de súbito, no lado avesso da vida.