Desci do autocarro e caminhei sem grandes pressas. Tinha tempo. De modo que lá fui devagar a apreciar o começo de dia farrusco, mas que, por aquela hora, já se adivinhava quente. Ao meu redor, mais passos ritmados se encaminhavam ao mesmo destino. Uns mais apressados do que outros, mas todos no mesmo sentido. Ao fundo, avistei os mesmos gémeos que já não via há tempos, lado a lado, como sempre, caminhavam em silêncio enquanto me cruzavam o caminho - os irmãos Dupont, como carinhosamente (?) são conhecidos entre os colegas. Instintivamente, parei por instantes e fiquei a apreciá-los, cada vez mais longe, até desaparecerem do meu horizonte. As mesmas batas brancas, iguaizinhas, denunciavam a profissão que ambos escolheram: médicos neurologistas. Vinte e cinco anos separavam o tempo daquele instante, desde a primeira vez que os tinha visto e, no entanto, apesar da falta de cabelo e da cor esbranquiçada do restante, o mesmo aspecto…tudo se encaixava direitinho no cenário, como se o tempo nunca houvesse passado. Desde esse dia, de vez em quando acontecia voltar a encontrá-los, sempre às mesmas horas, pelo mesmo caminho, cruzando-me com os seus destinos…
Desconheço se construíram ou não carreiras familiares, contudo, ali e enquanto caminhavam, eram como se fossem um só. Mas gosto de os imaginar a partilhar o mesmo automóvel que conduzem à vez, a partilharem a mesma casa, a dormirem no mesmo quarto em camas lado a lado, a lerem os mesmos jornais e revistas científicas que vão trocando e sentados em poltronas, também elas, lado a lado. Provavelmente a verem o mesmo programa de televisão, porque invariavelmente será do agrado de ambos. Sentados à mesa de jantar, frente a frente (como se se mirassem a um espelho e cada um reflectisse nos olhos do outro a imagem de si mesmo), enquanto vão mastigando silêncios vagarosos. A atenderem e a baralharem os seus doentes em gabinetes que por sua vez também se encontram lado a lado ( - Desculpe Doutor, mas ía jurar que o tinha visto entrar ali para aquela porta do lado)…
Após dedilhar nas teclas do relógio de ponto o meu número mecanográfico, de colocar o indicador no postigo incorporado e de a máquina me devolver o meu nome como prova de que leu correctamente as minhas impressões digitais, olhei para as horas e reparei que, se os gémeos se tivessem atrasado por qualquer motivo hoje, o mais certo seria chegar atrasada ao trabalho sem necessidade nenhuma. Mas não; ao invés de ponteiros que se perseguem em compassos desacertados de um tempo que os finta a cada segundo, os gémeos são sempre meticulosamente certinhos. O relógio marcava 07.58h.


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Muito obrigado!

 
O preto da roupa que lhe compunha os ossos era o mesmo que lhe ofuscava a luz radiosa que provinha do profundo do céu azul dos seus olhos. A viuvez condenou-a ao negro perpétuo, onde fora ré sem direito à negação de uma culpa que não era sua. De vez em quando, metia a mão ao bolso do avental e um quadradinho branco a enxugar-lhe as pálpebras rasas de água que se diluia em esperanças cristalinas de ontens...
Apesar do sal que se despenhava das cataratas, nenhum soluço. Ás vezes, à tardinha, ouvia-a cantarolar a saudade das cantigas, à sua companheira muda a quem chamavam solidão, que a escutava com a maior das atenções.
Anoitecia janeiros e debulhava agostos. Por vezes, quando fecho os olhos, ainda a encontro curvada sobre a dobra do lençol, a remendar o que já havia sido remendado vezes sem conta, até que as tremuras...